Querido Carlos,

Se não falar de acontecimentos, Carlos, falarei do quê?
Quando poesio, crio e morro todo dia.
Diante das letras, a vida é um sol pulsante
Não só aquece: alumia.

Afinidades, aniversários, incidentes pessoais não contam – vivem.
Faço poesia com o corpo
Esse excelente, completo e desconfortável corpo, tão propenso à imersão lírica.
Minha gota de bile, minha careta de gozo ou dor no escuro
São inerentes.
Não só revelo meus sentimentos
Que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem
Mas o que penso e sinto, sim, isso é poesia.

Se não cantar minha cidade, Carlos, cantarei o quê?
O canto se faz no movimento dos carros e no segredo das casas
Não é música ouvida de passagem, mas movimento intrínseco do cidadão,
barulho constante e vivo nas ruas junto ao meio-fio.

O canto não é só a natureza,
Mas os homens também formam a sociedade.
E para mim, Carlos, chuva e noite, fadiga e esperança tudo significam.
A poesia – não me tires a poesia das coisas –
Exige sujeito e objeto.

Ah, eu dramatizo! E invoco, indago – mas não perco tempo em mentir.
Eu me aborreço.
Porque sei que um camafeu de marfim, um sapato de boneca,
A valsa da madrugada, as histórias de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Se não falar de infância, Carlos, falarei do quê?
Minha infância colorida e ainda viva
Que vivo todos os dias em recordação
Se recordei, era poesia
Se ainda ficou, tão pó não era.

Penetro surdamente no reino das palavras
E sei e sinto e amo todos os poemas que esperam ser escritos.
Não estão paralisados: estão em movimento
Há alma e frescor na superfície inata
Ei-los completos e afoitos, em estado de vocabulário.

Convivo com meus poemas, antes de escrevê-los.
Espero, se obscuros. Clamo, se me provocam.
Espero que cada um se realize e consuma
Com seu poder de palavra
E seu poder de silêncio.
Não forço o poema a se desprender do limbo.
Nem colho do chão o poema que se perdeu.
Não adulo o poema. Amo-o
Como ele acalantará nossas inquietudes de forma indefinida e presentificada
No espaço.

Chega mais perto, Carlos, e contempla estas palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, com certo interesse pela resposta,
nobre ou sofrível que lhe deres:
Trouxeste tua parte?

Repara:
Repletas de melodia e conceito
Elas passeiam na noite, as palavras.
Ainda insones e impregnadas de medo,
rolam num rio longínquo e se transformam e apreço.
Porque se eu não falar de tudo isso, Carlos, do que mais falaria?
Tire de mim as palavras e findará a vida minha.

[Em resposta a “Procura da Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade].

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